Precisa-se de médico urgentemente para trabalhar na França! Imagine a cena: Você está passeando por charmosos vilarejos franceses e, ao invés de pôsteres anunciando queijos artesanais, vê um cartaz com os dizeres “Procuram-se Médicos”. Você não está lendo errado. Esse pedido de socorro eu mesma já testemunhei algumas vezes.
Assim, para os médicos de outros cantos do mundo, isso soa como uma oportunidade brilhante, quase como ganhar na loteria. Mas, atenção! Quando a esmola é grande, o santo desconfia, não é mesmo?
Vamos lá, embarque nessa jornada comigo e descubra como é trabalhar como um médico estrangeiro na França. Eu também vou explicar sobre a crise na saúde pública e se vale a pena arriscar seu estetoscópio por aqui!
É verdade que a França está sem médicos e por qual razão?
O jornal virtual Lexpress divulgou um estudo realizado em 2022 pela IQVIA, empresa que pesquisa dados de saúde. Segundo as suas estatísticas, quase 12% dos franceses vivem sem acesso médico adequado, ou seja, cerca de 7 milhões de pessoas. Dessa forma, se não tomarem medidas para reverter essa tendência, esse número pode aumentar para mais de 20 milhões até 2027.
De fato, é difícil compreender que um país desenvolvido enfrenta essa carência. Todavia, podemos encontrar a resposta levando em consideração alguns fatores. O primeiro deles é que muitos profissionais estão se aposentando e os recém-formados não estão interessados em exercer o ofício nas áreas rurais.
Uma matéria publicada pela Santé Académie em 30 de maio de 2024 relata que, em 2022, para cada novo estudante de medicina matriculado, três médicos se aposentaram. Quanto à distribuição geográfica, este artigo revela um dado impressionante. Paris possui uma densidade muito alta, com aproximadamente 888 médicos por 100.000 habitantes. Em contraste, departamentos como Haute-Loire têm uma densidade bem menor, com cerca de 244 médicos por 100.000 habitantes.
A outra razão diz respeito às poucas vagas disponíveis nos cursos de medicina. Na França, até o ano de 2020, existia uma espécie de quota. Esse numerus clausus restringia o número de estudantes admitidos nas escolas de medicina a cada ano. Como resultado, essa rigorosa limitação gerou um número insuficiente de profissionais para atender à demanda crescente da população.
Além disso, os diretores dos hospitais universitários afirmam estar sobrecarregados para lidar com novos estudantes. Para completar essa lista de desafios, os profissionais sentem-se pouco reconhecidos, especialmente os médicos generalistas, que têm solicitado melhores condições de trabalho.
Em resumo, sem ações concretas e imediatas, a necessidade de médicos poderá se agravar ainda mais nos próximos anos.
Quais especialidades estão em maior escassez na França?
Segundo o estudo realizado pela Ipsos e divulgado em 30/05/2024, pela Santé Académie as especialidades que estão mais em falta são: dermatologia, cardiologia, oftalmologia, pediatria, ginecologia e médico generalista.
Um ponto adicional sobre essa questão é que, na França, todos os médicos são especialistas. Isto é, eles têm a obrigação de completar seus estudos através da residência em um hospital. Assim, até mesmo o “médecin traitant” deve passar por esse processo para poder exercer a profissão no país.
Quanto à escassez de médicos generalistas existe uma lógica fácil de explicar: na França, o clínico geral atua como um filtro, sendo o primeiro ponto de contato da população com o sistema de saúde. Desse modo, essa é a especialidade que tem mais contato com os pacientes. Por um lado, os médicos de família impedem encaminhamentos desnecessários aos especialistas. Por outro lado, eles têm ficado cada vez mais sobrecarregados, o que justifica a escassez.
Quais medidas o governo tem tomado para amenizar essa crise?
O governo francês tem adotado várias medidas para enfrentar a crise no sistema de saúde. Em 6 de abril de 2024, o Primeiro-Ministro Gabriel Attal anunciou um conjunto significativo de ações.
Primeiramente, ele propõe o aumento substancial de vagas nos cursos de medicina, com planos de adicionar 12.000 vagas até 2025 e mais 16.000 até 2027. Ademais, o Chefe do Governo anunciou que irá designar um encarregado para buscar médicos no exterior que desejem trabalhar na França.
Outra proposta que está sendo implementada é o plano de emergência para cuidados continuados. Esse projeto visa a garantir que haja um médico disponível a cada 30 minutos para todos os cidadãos, tanto nos fins de semana como à noite.
A terceira medida está gerando controvérsia, pois ela envolve a criação de consultas diretas com fisioterapeutas e especialistas médicos. Isso quer dizer que a população não necessitará passar pelo médico de família.
Por fim, o governo também está tentando regularizar a situação dos médicos estrangeiros que já se encontram em exercício no país. A saber, muitos deles estão sem contrato de trabalho ou autorização de residência.
Qual é a estimativa de médicos estrangeiros em exercício no país?
Um estudo realizado em 2020 sobre médicos estrangeiros, a socióloga Francesca Sirna destacou que a Ordem dos Médicos registrou 22.568 profissionais com diplomas obtidos fora da França atuando regularmente.
Sirna observou que quase metade desses profissionais (45,5%) possui qualificações europeias, enquanto o restante é composto por médicos imigrantes de países não europeus, sobretudo vindo do Magrebe e da África Subsaariana.
Como um médico estrangeiro pode trabalhar na França?
Primeiramente, é importante esclarecer que, mesmo sendo um cidadão francês, o médico será considerado estrangeiro caso tenha se formado em outro país. Em outras palavras, a Ordem dos Médicos da França leva em conta o local de obtenção do diploma e não a nacionalidade do requerente.
Vamos dividir o passo a passo em quatro partes para facilitar a compreensão:
1º) Prova de Competência Linguística
O primeiro passo que o médico formado fora da União Europeia deve fazer é comprovar a proficiência na língua francesa. Isso pode ser feito através de certificados de competência linguística, como o nível B2 no DELF (Diplôme d’Études en Langue Française) ou no TCF (Test de Connaissance du Français). Lembrando que esse último é válido apenas por 2 anos.
2º) Reconhecimento do Diploma
Logo em seguida, o profissional deve proceder com a validação do diploma. Para isso, existem dois caminhos distintos, quais sejam:
a) PACES (Première Année d’Études Communes de Santé)
O PACES nada mais é do que um procedimento destinado aos estudantes das mais diversas áreas de saúde. Durante o primeiro ano na universidade os alunos receberão uma formação básica e ao final desse período eles serão submetidos a um exame. A depender da classificação nesta prova, o estudante poderá ou não continuar seus estudos na carreira de sua escolha.
Para médicos formados fora da União Europeia, o PACES também indica em qual ano da faculdade eles irão ingressar. Esse processo é mais adequado para recém-formados, pois não possuem ainda a especialização necessária para o EVC.
O candidato deve preparar um dossiê e enviá-lo à faculdade de Medicina desejada. O diretor da faculdade avalia o dossiê e o envia ao Ministério da Educação, que decide em qual ano do curso de Medicina o médico será colocado.
Depois de concluir o primeiro ano de estudos gerais terá de se submeter a prova do PACES. Quando obtiver o diploma de medicina, ainda terá que passar pelo concurso do ECN (Épreuves Classantes Nationales). Ela é a prova nacional de residência médica obrigatória para todos os estudantes de medicina das universidades francesas.
b) EVC (Épreuves de Vérification des Connaissances)
A EVC é um concurso que acontece somente uma vez por ano. Ele destina-se aos médicos que já têm especialização em seu país de origem, exceto aqueles interessados em vagas de clínica geral, geriatria ou medicina de emergência.
As inscrições para a prova são feitas online no site do Centre National de Gestion (CNG), onde as datas e os termos são atualizados regularmente. Por exemplo, em 2024, as inscrições começaram em junho, com as provas previstas para ocorrer entre meados de outubro e dezembro deste mesmo ano.
O candidato terá quatro oportunidades para passar na prova teórica. Se for aprovado nessa etapa, ainda deverá cumprir um período probatório de dois anos em hospitais públicos para consolidar suas competências médicas.
Durante esse tempo, o médico exercerá a profissão com um estatuto de profissional associado (PAA – Praticien Atache Associe). Isso significa que ainda não terá autonomia, sendo submetido a supervisão de um outro médico.
3º) Autorização de Exercício
Após a conclusão dos passos anteriores, o médico estrangeiro deve solicitar uma autorização de exercício junto ao Ministério da Saúde francês. Esta permissão é concedida pela Comissão de Autorização que possui uma certa discricionariedade para decidir a aprovação ou não dos candidatos.
4º) Inscrição no Conselho Nacional dos Médicos da França
Todos os médicos que desejam trabalhar na França devem ser registrados no Conseil National de l’Ordre des Médecins. Este registro garante que o profissional cumpre com os requisitos legais e éticos para praticar a medicina no país.
Posso trabalhar como médico na França sem validar o diploma?
Existe a possibilidade de trabalhar como médico sem o processo de validação do diploma através de um estágio chamado Faisant Fonction d’interne (FFI).
Muitas vezes as vagas são destinadas aos cargos de geriatria, medicina geral e medicina de emergência, com um contrato de seis meses, que pode ser renovado.
O procedimento ocorre da seguinte forma: O diretor do hospital informa ao departamento de Recursos Humanos a necessidade de contratação de estagiários. Então, o RH do hospital prepara um concurso informando todos os detalhes das vagas ofertadas.
Para ficar por dentro das oportunidades, o interessado pode verificar nos sites do hospital e da faculdade de medicina associada a ele. Essas mesmas oportunidades também aparecem no site da Fédération Hospitalière de France.
Para se candidatar, não é necessário nenhum pagamento. Basta preencher o formulário de inscrição, reunir todos os documentos necessários e enviar o processo para a direção do hospital que está oferecendo a vaga. Geralmente, o dossiê inclui o diploma, currículo (CV), uma carta de apresentação e uma carta de recomendação.
Finalmente, conforme o site izimedical.org, o estagiário FFI receberá em torno de 1.300 euros por mês. Esse valor é fixo e não aumenta com o passar dos anos. Porém, para aumentar a renda, o médico poderá participar de plantões, recebendo 149 euros por cada um, se realizado entre segunda e sexta-feira. Caso o plantão seja aos sábados, domingos ou feriados o valor sobe para 169 euros. O estagiário terá direito também a benefícios adicionais, como cobertura de despesas com alimentação e alojamento.
Quanto ganha um médico na França?
Essa questão eu vou dividir em duas partes. Inicialmente temos os médicos estrangeiros que passaram no EVC. Nesse caso, a média de salário é de 2.537 euros por mês, podendo chegar até 4.607 euros ao longo dos anos. Se o médico for trabalhar em uma pequena cidade da França, pode ganhar uma bonificação de 3.000 a 4.000 euros como uma forma de evitar o “deserto medical”. Os plantões de segunda a sexta-feira acrescentam 154 euros ao salário. Já os plantões dos finais de semana e feriados garantem 187 euros a mais no saldo do profissional.
A segunda parte dessa resposta é voltada para os médicos do setor privado. Portanto, aqui estamos falando de quem já atua com autonomia. Nesse caso, o médico que se propõe a trabalhar na França em seu próprio consultório ganha mais do que o do setor público. Pois bem, é difícil precisar a renda porque depende muito da quantidade pacientes e do valor do atendimento. Mas, uma consulta com um clínico geral credenciado custa cerca de 25 euros, enquanto consultas com especialistas têm tarifas um pouco mais altas.
Para avaliar se o valor de 25 € é justo, consulte a imagem abaixo. Note que a França possui a menor tarifa de consulta médica em comparação com seus vizinhos. Por exemplo, em Portugal, a consulta custa 65 €, na Espanha 69 € e na Itália 70 €. Essa diferença tem levado jovens médicos franceses a buscar emprego em outros países.
Vale a pena trabalhar como médico na França?
A França não está entre os melhores países do mundo para trabalhar nesta profissão, especialmente por não lidar muito bem com a presença de médicos estrangeiros. No entanto, o país se destaca em outros aspectos, oferecendo segurança, boa infraestrutura e qualidade de vida. O governo tem se esforçado para reverter a crise que assola o país, dedicando mais atenção a essas questões sensíveis.
É fundamental considerar alguns fatores, como a adaptação à cultura e ao idioma, antes de analisar os benefícios financeiros. Sem o domínio do francês, será impossível trabalhar na França.
Para aqueles que desejam conhecer como é o exercício da medicina em outro país, esta pode ser uma oportunidade de ouro. Abrir-se a novas experiências pode ser muito enriquecedor e valorizar o seu currículo, além de abrir portas para oportunidades em diversas partes do mundo..